sexta-feira, 28 de março de 2014

Livre trânsito



Há muitos vaidosos nesta terra. A vaidade não tem mal nenhum, se dela não vier ao mundo nada pior do que a vã vaidade. Mas faz mal ao estômago, que tenta gente tão estúpida se arrogue tanta importância. Com sentido de humor conseguimos encarar o ridículo das situações. Com bondade consegue-se perdoar aos vaidosos mais engraçados, geralmente de maior idade. Esses, se são vaidosos, têm outros atributos, como a loucura, a insanidade descomplexada e o excentrismo, a suavizar-lhes os traços; de modo que, ao serem tão estupidamente loucos, deixamos de os considerar estúpidos, para os passar a considerar excêntricos loucos, cómicos, brilhantes. O pior de tudo são os velhos sérios, e todos os que não têm um pingo de loucura, de invenção, e se julgam senhores  supremos deste minúsculo paraíso. Não acrescentam nada ao universo a não ser uma constelação de vaidades, incrementadas por um suposto que lhes é conferido pelas regras das quais são argumentos  e motivos de existência. Enquanto os outros são verdadeiramente senis, estes são verdadeiramente ridículos, e pior que tudo, tornam ridícula toda uma plateia de aplausos que fazem um ser razoável, e com muita vontade de rir, sentir-se sozinho ante a portentosa bandeira da razão, da arte, da cultura, da política, da ciência, do saber, da civilização inteira!… São tão grandes e frequentes os espectáculos da vaidade, da mania da intelectualidade, da mania da diferença, da mania da inteligência, da mania do conhecimento, da mania… da mania de ser idiota, que dá vontade de chorar. Interrogamos pessoas inteligentes, ou pelo menos que nós consideramos, para ver se não pensam também assim, e se não têm de contrair o impulso do riso ou oprimir no peito o escárnio, ao ver semelhantes imbecilidades serem elevadas aos cumes da civilização do lugar, de modo a tornarem ainda mais inflamado o ego que as produz. Quantas vezes já não saiu dessas interrogações um desapontamento total, ou pelos menos parcial, doseado de muita indiferença, perante qualquer tipo de espectáculo, até o mais rocambolesco! Daí que ficamos sós, como únicos espectadores de uma cena onde todos participam, de uma maneira ou de outra, inclusive nós, com o nosso silêncio perante a manifesta imbecilidade, que de tão calado é aceitação de que se elevem os burros ao céu das estrelas perenes de uma ou duas épocas, que não duram mais que isso, por norma que também tem alguma excepção. Chegamos a duvidar se não haverá injustiça no nosso julgamento, se não será vaidade pior estarmos sempre a ver burros pentear as orelhas frente aos espelhos da época, se não estaremos a ser ainda mais burros e vaidosos ao inflamar o ego no nosso auto-espectáculo do desprezo. Mas não! Haja razão! Há coisas que não podem caber na cabeça de ninguém. Não vale a pena entrar na auto-crussificação que resultará por ventura em vaidade pior que a “normal” e da qual se sai ainda mais insane que os insanes “normais”. Há vaidades e vaidades, e há tanta gente elevada que devia rastejar, que por não sabermos porque estão em cima do palco a ladrar, não quer dizer que não sejam uns autênticos rafeiros, sobretudo os que pensam que não, os que nem sequer duvidam que lhes possa acontecer! Há coisas que não vamos engolir sem soluçar.
Com este livre trânsito do espírito, poderemos, mais facilmente, passar sem grandes dores, sobre tantos filmes opressores, sobre tantas vãs vaidades, que em memória delas restarão estátuas de vacuidades.
Tanto livro escrito, tanto dinheiro gasto, tanta, tanta coisa, tanto espectáculo encenado, tanto discurso feito, tanta assembleia municipal, e das outras, tantos esgares de génios, tanta gente tão louca, que é livre, porque dá ganha, de nos rirmos desalmados por tantos doutores errados, que no trânsito ainda nos apanham a nós a uma cena que representaremos sós, num palco de aleluia, rindo e sonhando acima da nossa vaidade e vacuidade, que o que interessa é a vida e o que ela tem de divertida.

Texto escrito no ano 2000

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