domingo, 16 de fevereiro de 2014

Não é fácil ser...



Começa por não ser uma opção. Nasce-se aqui, deste lado da fronteira espanhola e deste lado do mar. Não é coisa que doa quando se nasce e pode nem chegar a ser quando se é criança. Depois vai-se acreditando, com todo a força da juventude, com todos os sonhos intactos - os nossos e os que julgamos comungar com os restantes aqui nados e criados.  A dor vai-se instalando aos poucos – reagimos, mandamos calar os velhos, todos os velhos… e sonhamos, acreditamos em ser… em ser tudo o que um povo quer. Cada desilusão é um risco na nossa fé. Cada frustração é uma marca negra na nossa esperança. Os nossos sonhos pessoais guardamos no baú do esquecimento e, como se nunca houvéssemos sonhado, vamos vivendo, um dia atrás do outro, como dizem os saberes e os livros. No fim dos mês recebemos o salário. Depois gastamos o salário. Bebemos uns copos, comemos umas iguarias e ficamos a ver o baile que, invariavelmente, é composto por pessoas bastante anormais ou já muito alcoolizadas. Depois vem outro mês e ao fim de muitos vêm todos os anos… Queríamos só uma pequena alegria, uma grande alegria, uma bocadinho de fé… e lá estamos nós outra vez, embrenhados na esperança, a rezar por todos os poros da alma por tudo o que sabemos que nunca mais teremos… e que já nem sabemos, ao certo, se alguma vez tivemos. Aprendemos que não vale a pena ser optimista. Vamos para casa. Fechamos a porta e choramos, porque já não podemos mais. Passamos a compreender os velhos e aprendemos, facilmente, a maledicência. Como nos dói! Olhamos para as tabelas e lá estamos nós – em último, ou pelos menos a dar para o fim. Nada mais importa. Encolhemos os ombros, mãos na cara, não há mais fé, nem mais café – para ninguém, ouviram! Baixemos os braços e encaremos – é tudo vão, todo o sonho é vão…
Bem sabemos como começaram a ser tolhidas, bem cedo, as nossas esperanças privadas, moldadas à tradição dos castradores, e daí podemos tirar lições para tudo o resto. Começa-se por não se bonito, por não ser rico, por não ter roupas boas, e tem um gajo de se esforçar o dobro, e o se o dobro é vão baixemos os braços então. Os mesmo bons vão embora, os medíocres reinam e nós não sabemos por que não ficámos em casa. Ninguém quer saber do nosso jeito, da nossa vontade, enquanto outros são levados ao colo. Mas não, não nos desculpamos e, durante muitos anos, ao acordar, todas as manhãs, sentimo-nos os últimos dos mortais – incompetentes, indolentes, idiotas. Mas haja razão! Não, a culpa não morrerá solteira, mas está comprovado, cientificamente, que não é minha. Vislumbra-se, no horizonte, uma oportunidade. Por vezes arriscamos mudar de vida, só por arriscar, sem acreditar e sem vontade. Há outras, mais esporádicas, em que dizemos – era mesmo aquilo que eu faria bem, melhor do que ninguém. É preciso não perder o pé. Estamos aqui, neste “nico” de terra, à beira mar espetado. Na bandeja surge outro postal, apropriado para o local – mais um súbdito de um rei que vê numa terra de cegos. Sim senhor, não senhor – é para isso que servem os que sobem na vida à custa de outras coisas, para além da sorte e da capacidade. Quando são espertos, para além das boas maneiras, e já que perderam a honra, ao menos vão ficar com o bolo. Trazem por isso, uma faca escondida do bolso, estilo “palaçoula”. Também há os meninos bons – que são os do costume.
Fecho a porta. Não quero saber. Não me telefonem. Não aguento mais. Tanto burro doutor, tanto senhor… A desculpa! Eles sempre têm uma boa desculpa, filosófica para ser bonita e ninguém a compreender, como ninguém a pode compreender. Aos leões - mandemos tudo aos leões, os empregados e os patrões, as esperanças privadas e colectivas, que já nem de esperanças se falava, mas de certezas e triunfos. Báh! Conseguiram – sim eu sou incompetente, um idiota, estou aqui com um discurso quase intragável e indecifrável. Chamem as vacas! Chamem os bois, pelos nomes, que eu não sei como se chamam esses cabrestos todos da manada, mas que aqui vai um gado, lá isso vai…A ministra recta, correcta, que nos quer pôr a pão e água e nós até aceitávamos, mas mais uma vez é só para alguns – o pão e a água -, dá na televisão. Sempre a mesma coisa… sempre a levarmos nas orelhas… Ou é Carnaval ou é Quaresma! Mas só é para alguns, tanto a Quaresma como o Carnaval. Tudo porque alguém tem culpa, mas não está preso, continua lá e nós aqui. Que se lixe! Se em troca tivéssemos só uma alegriazinha - ser os primeiros, nalguma coisa! Sofremos por sermos de onde somos (e quem somos), porque sabemos, consciente ou inconscientemente, que já fomos, durante um mísero meio século muito distante (ou toda a infância), os primeiros, e desde então não temos passado do fim da tabela. Em vez de investirmos no nosso sangue, para ser grandes e ter alegria, damos cabo de nós todos os dias em favorecimentos absurdos e sistémicos a mancos de todas as profissões. Quando temos esperança, porque temos motivos, é morta por um bando de burros soltos das lojas, das universidades, das escolas, das máquinas, dessa maldita e inútil ganadaria. Desliga a televisão. Se quiserem acabar com ela que acabem! Não me perguntem a opinião! Não volto a votar… a votar em ninguém… ouviram? Não contem comigo. Sim, se houver guerra, talvez... Caso contrário não. Mas qual guerra! Guerra não haverá, mas se houver, podemos estar certos de uma só coisa - vamos perder. Chamem-me portuga, derrotista! Sim! Quero-vos contra mim a não a aceitar o que digo. Não é fácil perder toda a fé de uma vez! Coisa maldita! Não é fácil ser… português.

 Texto escrito em 2000

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Regresso ao paleolítico



O “Cross Fit” e a alimentação paleolítica são as modas de vanguarda para tornar o humano corpo mais belo, saudável, quase perfeito, quase imortal... No Olimpo Afrodite, Apolo, Artemis, Atena, Zeus e restantes beldades sagradas não deixaram de soltar uma gargalhada que contaminou Atlas. O “Cross Fit” é a prática de exercício físico até vomitar. A alimentação paleolítica é comer tudo o que supostamente comeriam os humanos antes da invenção da agricultura: pouca coisa, portanto. Cada um segue a dieta que entender, e corre até morrer, se quiser. Afinal trata-se de uma moda ocidental. O que irrita nestas práticas é a sua componente “religiosa”. Há uns anos pratiquei capoeira, porque era divertido, de início, mas odiava a catequese. Ao que parece toda a prática de um exercício físico, ou a escolha de um regime alimentar, vem acompanhada com uma componente teórica caquéctica. Odeio que me tentem impingir uma catequese, uma ideologia, uma fórmula para ser menos miserável, ou quase um deus. Dá igual. Tudo isto é irracional e conduz a extremos que nos deixam à beira de lágrimas de compaixão, como é o caso do baby yoga.
A selva urbana e os seus pacotes de batatas fritas e hambúrgueres não nos convém, e isso leva-nos a pensar que podemos, seguindo esta vida regularmente, comer como os nossos antepassados pré-históricos. Não estaremos a negar, pelo sedentarismo e a alimentação, não apenas o sedentarismo e alimentação do homem moderno, mas a sua própria cultura, tudo, a civilização inteira? Neste fim dos tempos, estaremos tão cansados da civilização e das suas limitações que até nos apetece dar meia volta e regressar à “casa”, a natureza. Mas o que é a nossa natureza? Não foi precisamente essa natureza humana o que nos levou a inventar a agricultura e a rasgar a face da terra como formigas famintas lutando com os elementos? Não há nada de preocupante nessas ideologias, religiões, ou o que sejam. São modas. Têm talvez um ou outro mestre cientista “ideológico” a dar-lhes um cozinhado científico. Proscrever alimentação láctea depois de ganhar dentadura, a mim, que mamei até me lembrar disso, parece-me uma vingança sobre os outros por algum temporão desmame. Depois dessa moda haverá outras, mas o ser artificial, ou natural, como entenderem, que é este homem sem deuses, rasgando a terra como criatura insana e sem espaço para as suas ambições, voltará a cair sempre, como fruto maduro, na sua própria natureza, em que o paleolítico como a selva de acácias ficaram atrás das suas costas, distantes do alcance da sua vista.

Do the "Russians love their children too"?



Quando em plena Guerra Fria, e eu era a criança que nunca deixava chocolates para comer amanhã, ouvi essa música no Top +, pensei: “mas não será obvio? Claro que os russos também amam os seus filhos”? Qual é a dúvida?” Felizmente, e apesar de ser uma criança triste (sim, apesar dos chocolates, nunca andei por aí carregada de endorfina e sorotonia e os seres endorfinados sempre me pareceram tontinhos, como pássaros cantando nas galhas antes de levarem um tiro, mas isso é uma falha estritamente biológica, provavelmente genética, uma desadaptação congénita, um resultado evolutivo “último”), não era para mim imaginável uma humanidade que não amasse os filhos. Podia ter feito muito frio e eu nem ter sido feliz, mas a minha mãe e o meu pai, com os seus ataques ocasionais de querer moldar-me, mudar-me um pouco, corrigir-me (bastante infrutíferos creio), nunca me levaram a questionar o amor dos pais pelos filhos. Não conhecia monstros. Não acreditava em monstros, muito menos numa humanidade que institucionaliza a monstruosidade.
Nesta semana no Afeganistão foi legalizada uma prática que deverá ser aí comum. Os homens têm direito de bater nas suas mulheres e filhas, têm direito de as venderem, mutilarem… Whatever... Acreditais na humanidade? Certo é também que as nações não são pai nem mãe, mas supusemos que os estados teriam como função defender os que não têm força bruta para não se deixarem espancar e violar ou matar. Teriam de garantir os nossos “humanos direitos”, qual mãe e pai da "colecção". De onde nos veio essa ideia?

Contudo, propor-se matar um filho para continuar a pertencer a um feudo protector de um deus qualquer é afinal algo monstruosamente humano. Matar um pode significar ter outro. Obedecendo terás vida? Sim. É absurdo, mas verdadeiro. Do ponto de vista masculino podem ter-se centenas de filhos. Um sacrifício, de ou outro numa guerra letal, pelo capricho de um deus, pela manutenção de uma ordem social qualquer, não faz diferença. Não recebeu Job outra família, uma nova, e maior prosperidade em troca? Em troca do quê? De onde nos veio esta ideia de que todos podemos ser únicos e insubstituíveis, mulheres e crianças das nações? Do "espírito de rebelião" ou de um novo deus, um deus "homem frágil". De onde tirámos o fundamento de que não somos meras coisas para transportar os genes do rei da selva, Abraão eleito por obediência cega ao macaco “ideal”. Do ponto de vista genético, os seres do sexo feminino sabem que não são contemplados nem com o arsenal bélico, nem com o arsenal estatístico dos machos. Ainda assim, tratadas como coisas, têm de conformar-se a uma quantidade rude e primordial, em que um ou dois a mais ou a menos não fazem diferença. A Rússia tortuosa, tem uma alma demasiado inflamada de filhos feridos. Não é imune à dor maior. É certo. Foi contaminada pelo "demónio". Lá, como aqui, ser pai e mãe é também sofrer. Não é "Aceitar". Lá, como aqui, deus desceu dos céus e tornou-se homem, auto sacrificou-se, aceitou a morte, pela "redenção" desses indivíduos rebeldes que são os greco-romanos das novas eras, e nem Marx, nem Lenine, e a religião humana do século XX, apagaram a inscrição na ordem cultural dos flagelados, filhos de Eva, incapazes de aceitar a finitude, a impossibilidade de tomar o Céu de assalto.  A questão chinesa é diferente. Parece-nos que Marx foi aí mais eficaz. Haveria uma pré-inscrição mais propícia, menos propensa ao "mal". Aí, não como com Israel, que é um caso à parte, a nação é tida como o pai e mãe, de modo que não serão assim tão “únicos”, os filhos sem irmãos de uma pátria colectiva que tem muitos para “gastar”. Para nós, "bonzinhos da cabeça", indivíduos individuais, a perda é inestimável e o sacrifício imensurável. No Afeganistão não há pátria, mas há uma ordem social de babuínos, onde se garante o direito do macho dispor da sua prole como entender. Tem custado muito derrubar o babuíno macho do alto da sua sebe. É uma luta constante, entre os fracos em força e os fortes em “Lei”. Tem lugar na nossa rua, à nossa porta. O que pode um humano bebé contra uma fera? Tudo isto faz-me apreciar mais as hienas. É certo que se alimentam à vez e resmungam entre elas mas… e quem inventou que todos têm um lugar único e insubstituível? Onde nasceu a nossa individualidade? Onde apareceu o nosso lugar especial no formigueiro? Seremos melhores que hienas, diferentes de formigas? Ainda assim, foi nessa relação “animal” entre a mãe e o filho, o pai e a prole, nesse acordo genético de defender os nossos, que nasceu também todo o nosso restante amor, se algum temos. Ou não? Ainda assim, por Cristo, nosso irmão redentor da selvática desordem que resulta de um conjunto de indivíduos, ou sem Cristo, com Deus Pai, rei dos macacos visíveis e invisíveis, fora das leis, dentro das leis, haverá em todas as nações do planeta mais pais e mães que amam os seus filhos também, do que o contrário. Mas isso talvez seja um preconceito cultural meu. Não sei.