Quando eu morrer
quero ser só pó, sem sangue... Quando morrer quero morrer para sempre. Não, não
quero a eternidade, nenhuma eternidade... só a música efémera das bordas das
tuas lágrimas salgadas, quentes correntes de mar onde te abraço no fundo do
azul, sem dor dentro, no lugar secreto e reservado do seio; o lugar onde se
forma a vida de onde não queria ter despertado para ter consciência, nervos,
ossos, músculos, veias... Molha-me o pó de lágrimas e adormece-me ao som da
música com perfume de rosas em cabelos molhados, para fazer ondinhas, ondinhas
do mar, nesse arrepio de sentir a vida pela última vez... dá-me, dá-me um arrepio
de Bem antes de meu corpo gelar e regressar à terra, ao pó das
estrelas...
Sim,
quando morrer quero morrer para sempre e não, não quero voltar, sempre
igual, sempre a mesma, sempre com a alma em chagas e chamas... não,
não me dês sangue de Cristo... nenhum sangue, nem vida eterna.
Deus criador do céu e da terra, de todas as
coisas visíveis e invisíveis, do Bem e do Mal, da natureza
cruel, não quero a tua criação: para sempre a mesma coisa, este veio da
matéria, este desassossego do sangue, esta convulsão de vómitos, esta
dor... E a beleza que vejo? E a música? E o arrepio... deixa, deixa tudo isso
por favor... Não vês que nada vale a pena, que o nada é sempre melhor do que
alguma coisa, que o vazio é mais viável? Simples, fácil, nem precisa
compreensão... Não, não te sintas só, povoado de demónios... Sim o tédio... Entretém-se de outro
modo. Cria só seres sem história ou desenhos animados. Deixa-me, ou
explica-me as coisas. Não, não entendo nada... só o facto
da matéria comer a matéria para se tornar em outra coisa... para quê?
Para que os poetas vivam, porque a beleza só se vê de houver um contrário? O
bem se tiver um mal, o prazer na dor, a estética no sofrimento? Deixa-me em
paz... Dá-me um sono, um sono profundo e não, não quero mais isto...
adormece-me já! Quero passar as tardes todas da eternidade a dormir. Não gosto
de jogar às pedrinhas, já disse que não gosto! Não gosto de jogo nenhum que eu
jogue. Cria futebol. Vê futebol. Deixa só os jogadores de futebol ou de
outro jogo qualquer e vai vê-los para sempre, no estádio da
eternidade.
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