sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Quando eu morrer



Quando eu morrer quero ser só pó, sem sangue... Quando morrer quero morrer para sempre. Não, não quero a eternidade, nenhuma eternidade... só a música efémera das bordas das tuas lágrimas salgadas, quentes correntes de mar onde te abraço no fundo do azul, sem dor dentro, no lugar secreto e reservado do seio; o lugar onde se forma a vida de onde não queria ter despertado para ter consciência, nervos, ossos, músculos, veias... Molha-me o pó de lágrimas e adormece-me ao som da música com perfume de rosas em cabelos molhados, para fazer ondinhas, ondinhas do mar, nesse arrepio de sentir a vida pela última vez... dá-me, dá-me um arrepio de Bem antes de meu corpo gelar e regressar à terra, ao pó das estrelas... 

Sim, quando morrer quero morrer para sempre e não, não quero voltar, sempre igual, sempre a mesma,  sempre com a alma em chagas e chamas... não, não me dês sangue de Cristo... nenhum sangue, nem vida eterna.

Deus criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis, do Bem e do Mal, da natureza cruel, não quero a tua criação: para sempre a mesma coisa, este veio da matéria, este desassossego do sangue, esta convulsão de vómitos, esta dor... E a beleza que vejo? E a música? E o arrepio... deixa, deixa tudo isso por favor... Não vês que nada vale a pena, que o nada é sempre melhor do que alguma coisa, que o vazio é mais viável? Simples, fácil, nem precisa compreensão... Não, não te sintas só, povoado de demónios... Sim o tédio... Entretém-se de outro modo. Cria só seres sem história ou desenhos animados. Deixa-me, ou explica-me as coisas. Não, não entendo nada... só o facto da matéria comer a matéria para se tornar em outra coisa... para quê? Para que os poetas vivam, porque a beleza só se vê de houver um contrário? O bem se tiver um mal, o prazer na dor, a estética no sofrimento? Deixa-me em paz... Dá-me um sono, um sono profundo e não, não quero mais isto... adormece-me já! Quero passar as tardes todas da eternidade a dormir. Não gosto de jogar às pedrinhas, já disse que não gosto! Não gosto de jogo nenhum que eu jogue. Cria futebol. Vê futebol. Deixa só os jogadores de futebol ou de outro jogo qualquer e vai vê-los para sempre, no estádio da eternidade.

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